1. Três searas distintas do direito, historicamente, se ocupam de regular o ilícito, para ele indicando diversas respostas: as searas penal, civil e administrativa.
Não estanques nas suas regulações e imputações de conseqüências jurídicas, tais searas, já com longo desenvolvimento histórico, encontrando diálogos rotineiros com o direito comparado, operam em meio a uma tradição, que, grosso modo, preconiza, por regra, por uma independência entre tais diferentes instâncias.
Mais diretamente apresentando um cunho sancionador, encontram-se as searas penal e administrativa, que operam com normas dispostas estruturalmente de maneira de todo semelhante: preceito primário típico, de um lado; imputação de sanção, de outro.
2. Devido a seus distintos graus de exigências procedimentais, de sanção, de interpretação, figurando como última instância repressora, encontra-se a esfera penal, que, por excelência, exige o elemento subjetivo (dolo ou culpa) como seu pressuposto. É da seara penal, pelo menos teoricamente, a incumbência da censurabilidade das condutas mais graves, imputando-lhes, também em tese, as sanções de maior intensidade.
As normas penais incriminadoras, contudo, jamais são aplicadas de per si. Sua aplicação é sempre dependente de normas penais outras que lhes sustentem, que se encontram na parte geral do Código Penal; cuidam elas de todos os aspectos do injusto típico culpável. Não se parte, assim, do tipo; parte-se de e exige-se uma aplicação conjunta de normas não-incriminadoras para se possa, concretamente, aplicar-se a norma penal incriminadora. Sem um conceito normativo, por exemplo, de dolo e de culpa (artigo 18, I e II, do Código Penal), a própria aplicação das normas penais incriminadoras ficaria em xeque, pois que carecedora, para dizer o mínimo, de segurança jurídica.
Não bastasse a essencial função estruturante que as normas penais não-incriminadoras apresentam, também elas dinamizam a aplicação do direito penal, agregando segurança jurídica nos pontos de partida de interpretação do tipo. Não tendo de se reinventar em sua aplicação a cada vez, embora a diversidade doutrinária, a parte geral do Código Penal faz suas escolhas sobre elementos fundamentais para a aplicação do direito penal (por exemplo, relação de causalidade, crimes omissivos por comissão, tentativa, erro de tipo, erro de proibição, excludentes de ilicitude, culpabilidade). Tem-se, dessa forma, segurança nos pontos de partida, podendo-se, essencialmente, centrar-se a discussão dos casos concretos, na maioria das vezes, nos aspectos probatórios.
3. Já os tipos administrativos oscilam consideravelmente em suas condições de aplicabilidade.
Para os ilícitos tributários, por exemplo, tem-se um mínimo de estruturação prévia (artigo 136 a 138 do Código Tributário Nacional), prevendo-se, por regra, a responsabilização objetiva. Para os ilícitos ambientais, ausente quase que por completo uma parte geral, também vige a regra da responsabilidade objetiva por infração administrativa (Lei 9.605/98; Lei 6.938/81), enquanto que para os ilícitos disciplinares, em seus diversos microssistemas, há tendência para a responsabilização de caráter subjetivo. Infrações de trânsito, infrações a regras técnicas do INMETRO, infrações às normas regulamentares de conselhos profissionais, infrações a normas de edificação, enfim, uma plêiade numerosíssima de infrações administrativas é tratada em sistemas próprios sancionadores, inexistindo, em verdade, nada próximo de uma parte geral para a aplicação de seus tipos e respectivas sanções. Aliás, talvez seja essa característica, além da sua invariável imposição pela Administração Pública em sentido amplo, a única constante encontrável: grande variabilidade de sistemas normativos incidentes.
Há, assim, uma multiplicidade de sistemas normativos de repressão de ilícitos administrativos, enquanto que, na seara penal, a tônica é a unidade, que se dá, principalmente, a partir da existência de uma parte geral no Código Penal.
4. O sistema normativo trazido pela Constituição de 1988, no campo das esferas de ilícitos, ao lado dos historicamente consolidados âmbitos penal, administrativo e civil, inova com a instituição de mais uma esfera de ilícitos: aquele dos atos de improbidade administrativa.
Não se trata de uma nova espécie de infrações administrativas, embora por regra tenha-se como ofendida a Administração Pública com os atos de improbidade administrativa. As infrações de improbidade administrativa convivem com as infrações administrativas, podendo haver, pois, punições a título de improbidade administrativa e de infração administrativa com base no mesmo fato (como exemplo, lembremos o funcionário público que é demitido, administrativamente, e, ainda, punido a título de improbidade administrativa).
Nesse contexto, em que pese o ambiente em que se desenvolva a ação e a lesão ao interesse público e à Administração Pública, não se pode dizer que os atos de improbidade administrativa ingressem no campo dos ilícitos administrativos, máxime quando, neste último caso, a sanção está a cargo exclusivo do Poder Judiciário.
Não é o material com que se lida (infração à Administração Pública, por exemplo) que indica o sistema normativo a ser aplicado; nesse sentido, jamais ninguém negou que os crimes contra a Administração Pública não se encontrassem no âmbito do direito penal.
5. O reconhecimento das especificidades e originalidades dos ilícitos de improbidade administrativa pode significar considerável avanço para seu tratamento em nível jurisprudencial; com efeito, por todos os ângulos, as condições de aplicação das sanções relacionadas aos ilícitos de improbidade administrativa encontram-se muito distantes do modelo das infrações administrativas, a começar por exigir processo judicial.
Contudo, as incertezas doutrinárias e jurisprudenciais sobre como categorizar e, especialmente, sobre qual o mais adequado sistema normativo a amparar a aplicação das normas sancionadoras de improbidade administrativa dificultam sobremaneira a segura e concreta aplicação da Lei 8.429/92. Incertezas que se dão, inicialmente, no plano do preceito primário (normas estruturantes do injusto – como as que tratam de dolo e culpa), passando para o plano do preceito secundário (individualização da sanção, concurso material, concurso formal e continuidade, por exemplo), incertezas estas que estão consumindo, isso já há mais de duas décadas, a efetividade da própria Lei 8.429/92.
6. Tem-se a percepção de que os atos de improbidade administrativa foram tidos, até pela nomenclatura e pelo ambiente em que se desenvolvem as condutas, como próximos dos ilícitos administrativos. As conseqüências disso são bastante óbvias: como não existe um sistema normativo geral (de caráter material) para os ilícitos administrativos, essa debilidade foi transferida para a aplicação dos tipos de improbidade administrativa. E mais: feito esse desembarque no continente dos ilícitos administrativos, do estudo das normas típicas da improbidade administrativa passaram a cuidar os estudiosos do direito administrativo. E, como não tinham nenhuma parte geral própria a sustentar a análise dos tipos, passaram a desenvolver teorias as mais diversas, as quais, como característica interessante comum, tinham a estrutura do injusto culpável penal como baliza. Em outras palavras, administrativistas utilizaram estruturas de análise do tipo em direito penal, com alterações de denominação às vezes, para a construção de suas teorias.
Não que isso fosse equivocado. Até parece ser correto, porque as especificidades dos ilícitos de improbidade administrativa demonstram estarem bem mais próximos do direito penal. Talvez o caminho mais simples e hábil a solucionar os diversos e, às vezes, nada complexos problemas enfrentados pela jurisprudência, fosse fazer o caminho inverso: abertamente a partir e utilizando-se da estrutura do direito penal (em realidade, de sua parte geral), desenvolver o estudo dos tipos de improbidade administrativa. Resultado palpável disso seria, por exemplo, a inexistência de qualquer dúvida possível sobre as exigências de dolo e de culpa para a tipicidade dos ilícitos de improbidade administrativa (o parágrafo único do artigo 18 do Código Penal resolveria o debate: “Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente”; logo, exigir-se-ia o dolo – e não o dolus malus, como regra, punindo-se excepcionalmente, quando previsto, a título de culpa. Não teria sido, talvez, necessária mais de uma década após a publicação da Lei 8.429/92 para que, finalmente, o Superior Tribunal de Justiça pacificasse o tema para fins de aplicação dos artigos 9º a 11.
Com efeito, o sistema normativo que parece ser mais adequado para aplicação por analogia, para os ilícitos de improbidade administrativa, seja o penal, em especial de sua parte geral à míngua da inexistência de instrumentos normativos previstos para cumprir tal função de regulação no âmbito dos ilícitos administrativos.
7. Tal solução evidentemente encontrará também dificuldades. Não sendo ilícitos penais os ilícitos de improbidade administrativa, obviamente a analogia será necessária. Assim, sempre haverá momentos de insegurança decorrentes da própria aplicação da analogia, que, em seu método comparativo, precisará discriminar os pontos comuns distintos entre ambos ilícitos.
No entanto, as vantagens dessa aproximação com o direito penal trará evidentes ganhos para aplicação da Lei 8.429/92, em especial porque a dotará de uma parte geral.
A adequada solução, evidentemente, seria que desenvolvesse o legislador uma parte geral (por mínima que fosse) para amparar a aplicação dos tipos de improbidade administrativa, promovendo as devidas mesclas das figuras de direito penal e de direito administrativo.
Até lá, contudo, o que não se pode é continuar como está: profunda instabilização na aplicação da Lei 8.429/92 devido à ausência de parte geral.
Categorias:corrupção, direito penal, improbidade administrativa
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