Se se reduzir o processo penal à sua exclusiva realidade procedimental, não haverá como defender serem cautelares as prisões extraprocedimentais.
Não há dúvida de que observar o processo penal a partir dessa dimensão essencialmente procedimental, nele se buscando encerrar toda a lide, foi extremamente importante na solidificação do Estado Democrático de Direito, especialmente porque se enfatizou sobremaneira os direitos das partes no procedimento, dos quais se destacam os direitos de defesa. Em outras palavras, foi uma conquista.
Trata-se de uma vitória do pensamento liberal, limitando o debate às questões do crime específico que se está a investigar ou a acusar, refutando-se o debate da defesa social, dentre outros, que, no mais das vezes, com base em critérios de periculosidade, desprezavam os direitos de defesa em prol de um quase determinismo, descaracterizando o réu enquanto sujeito de direito, tornando-o objeto da pretensão punitiva, a quem chamava de delinqüente.
A concepção liberal, contudo, acabou por caracterizar o processo como uma mera relação jurídica estabelecida entre as partes e o Estado-juiz, de aí extraindo conclusões de que as razões e os fundamentos do processo apenas se assentavam nas suas próprias necessidades. Todo o processo penal, modernamente, desenvolveu-se nesse ambiente, com destaque a teoria do processo cautelar.
Isolaram-se, com isso, do processo, discussões externas ao próprio fato delitivo, tolhendo-se o debate sobre as repercussões do fato delitivo sobre outros direitos fundamentais ou bens coletivos constitucionais fora do procedimento mas igualmente atingidos pelo crime; vale dizer, o processo penal desprendeu-se, juridicamente, de suas funções de estabilização e de tranqüilização do meio social, erguendo fortes muros dentro dos quais o debate passou a centrar-se, exclusivamente, no fato criminoso isolado das conseqüências outras que causara no meio social.
Todavia, essa compreensão jurídica estritamente procedimental acaba por obnubilar as complexas funções que o processo criminal cumpre na proteção de direitos fundamentais e de bens coletivos constitucionais outros que não aqueles que se encontram em debate no procedimento.
Com efeito, o processo penal almeja não somente servir de meio para impor a sanção (garantindo, evidentemente, um pleno exercício da defesa), mas também isolar/diminuir os efeitos do suposto fato típico, possibilitando, à sociedade, segurança, estabilizando e fazendo esperada a presunção de mútuo e futuro respeito a direitos fundamentais e bens coletivos constitucionais.
É verdade que o processo desenvolve barreiras do caso com a realidade circundante: só que faz isso não apenas para promover um corte da matéria objeto de debate, equacionando-o, mas também para diminuir as relações de interferência decorrentes do fato ilícito sobre outros direitos fundamentais e bens coletivos constitucionais, pacificando, por conseqüência, o meio social.
A expectativa da reprimenda e de punição por meio do processo penal, em qualquer sociedade, é garantidora de paz no meio social. Sem essa expectativa, há sério perigo de um ciclo multiplicativo de violações a normas penais.
Dessa maneira, é preciso reequilibrar, no plano normativo-jurídico, a discussão acerca das funções internas e externas do processo, concedendo-se a devida atenção, por conseqüência, também, às finalidades de pacificação social decorrentes da relação jurídica processual-penal. Com efeito, há se estudar também os efeitos jurídicos da relação jurídica processual penal sobre outros direitos fundamentais e bens coletivos constitucionais afetados pela conduta ilícita.
É claro que isso traz à tona diversos problemas, já sentidos em diversas experiências históricas (com o nazismo, a ordem pública a ser defendida era aquela do próprio nazismo, que pregava grave aniquilamento do ser humano em favor de sua ideologia totalitária). Só que, ao contrário do que já vivenciado, as funções externas do processo devem ser desenvolvidas a partir da Constituição de 1988, cuja viga mestra é a proteção de direitos fundamentais.
Em outras palavras, as funções externas do processo a serem tuteladas cautelarmente (ordem pública, por exemplo) devem apresentar um conteúdo normativo coadunado com a proteção de direitos fundamentais e bens coletivos constitucionais.
Nenhum país democrático, nem mesmo a União Europeia, deixou ou deixa de empregar prisões preventivas extraprocedimentais fundadas, por exemplo, na reiteração delitiva e/ou na gravidade concreta do fato:
Convenção Europeia dos Direitos do Homem
ARTIGO 5° – Direito à liberdade e à segurança
- Toda a pessoa tem direito à liberdade e segurança. Ninguém pode ser privado da sua liberdade, salvo nos casos seguintes e de acordo com o procedimento legal:
…
- c) Se for preso e detido a fim de comparecer perante a autoridade judicial competente, quando houver suspeita razoável de ter cometido uma infracção, ou quando houver motivos razoáveis para crer que é necessário impedi-lo de cometer uma infracção ou de se pôr em fuga depois de a ter cometido
França:
Artigo 114 do Código de Processo Penal.
La détention provisoire ne peut être ordonnée ou prolongée que s’il est démontré, au regard des éléments précis et circonstanciés résultant de la procédure, qu’elle constitue l’unique moyen de parvenir à l’un ou plusieurs des objectifs suivants et que ceux-ci ne sauraient être atteints en cas de placement sous contrôle judiciaire ou d’assignation à résidence avec surveillance électronique : …
6° Mettre fin à l’infraction ou prévenir son renouvellement ;
7° Mettre fin au trouble exceptionnel et persistant à l’ordre public provoqué par la gravité de l’infraction, les circonstances de sa commission ou l’importance du préjudice qu’elle a causé. Ce trouble ne peut résulter du seul retentissement médiatique de l’affaire. Toutefois, le présent alinéa n’est pas applicable en matière correctionnelle.
Itália:
Art. 274. Esigenze cautelari.
- Le misure cautelari sono disposte:
…
c) quando, per specifiche modalità e circostanze del fatto e per la personalità della persona sottoposta alle indagini o dell’imputato, desunta da comportamenti o atti concreti o dai suoi precedenti penali, sussiste il concreto e attuale pericolo che questi commetta gravi delitti con uso di armi o di altri mezzi di violenza personale o diretti contro l’ordine costituzionale ovvero delitti di criminalità organizzata o della stessa specie di quello per cui si procede. Se il pericolo riguarda la commissione di delitti della stessa specie di quello per cui si procede, le misure di custodia cautelare sono disposte soltanto se trattasi di delitti per i quali é prevista la pena della reclusione non inferiore nel massimo a quattro anni ovvero, in caso di custodia cautelare in carcere, di delitti per i quali è prevista la pena della reclusione non inferiore nel massimo a cinque anni nonché per il delitto di finanziamento illecito dei partiti di cui all’articolo 7 della legge 2 maggio 1974, n. 195, e successive modificazioni. Le situazioni di concreto e attuale pericolo, anche in relazione alla personalità dell’imputato, non possono essere desunte esclusivamente dalla gravità del titolo di reato per cui si procede.
Portugal:
Artigo 204.º Requisitos gerais
Nenhuma medida de coacção, à excepção da prevista no artigo 196.º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida: a) Fuga ou perigo de fuga; b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.
Alemanha
Section 112a
[Further Grounds for Arrest]
(1) A ground for arrest shall also exist if the accused is strongly suspected of
- having committed a criminal offence pursuant to sections 174, 174a, 176 to 179, or pursuant to section 238 subsections (2) and (3) of the Criminal Code, or
- having repeatedly or continually committed a criminal offence which seriously undermines the legal order pursuant to section 89a, pursuant to section 125a, pursuant to sections 224 to 227, pursuant to sections 243, 244, 249 to 255, 260, pursuant to section 263, pursuant to sections 306 to 306c or section 316a of the Criminal Code or pursuant to section 29 subsection (1), numbers 1, 4 or 10, or subsection (3), section 29a subsection (1), section 30 subsection (1), section 30a subsection (1) of the Narcotics Act,
and certain facts substantiate the risk that prior to final conviction he will commit further serious criminal offences of the same nature or will continue the criminal offence, if detention is required to avert the imminent danger, and in the cases referred to in number 2, a prison sentence exceeding one year is expected to be imposed. In the assessment of strong suspicion of the accused’s having committed an offence within the meaning of the first sentence, number 2, consideration shall also be given to offences which are or have been the subject of other, also finally concluded, proceedings.
Estados Unidos
18 US Code, Title 18, Part II, Chapter 207, § 3142
…
(d) Temporary Detention To Permit Revocation of Conditional Release, Deportation, or Exclusion.— If the judicial officer determines that—
(1) such person—
(A) is, and was at the time the offense was committed, on—
(i) release pending trial for a felony under Federal, State, or local law;
(ii) release pending imposition or execution of sentence, appeal of sentence or conviction, or completion of sentence, for any offense under Federal, State, or local law; or
(iii) probation or parole for any offense under Federal, State, or local law; or
(B) is not a citizen of the United States or lawfully admitted for permanent residence, as defined in section 101(a)(20) of the Immigration and Nationality Act (8 U.S.C. 1101(a)(20)); and
(2) such person may flee or pose a danger to any other person or the community;
…
(e) Detention. —
(1) If, after a hearing pursuant to the provisions of subsection (f) of this section, the judicial officer finds that no condition or combination of conditions will reasonably assure the appearance of the person as required and the safety of any other person and the community, such judicial officer shall order the detention of the person before trial.
….
(g) Factors To Be Considered.—The judicial officer shall, in determining whether there are conditions of release that will reasonably assure the appearance of the person as required and the safety of any other person and the community, take into account the available information concerning—
(1) the nature and circumstances of the offense charged, including whether the offense is a crime of violence, a violation of section 1591, a Federal crime of terrorism, or involves a minor victim or a controlled substance, firearm, explosive, or destructive device;
(2) the weight of the evidence against the person;
(3) the history and characteristics of the person, including—
(A) the person’s character, physical and mental condition, family ties, employment, financial resources, length of residence in the community, community ties, past conduct, history relating to drug or alcohol abuse, criminal history, and record concerning appearance at court proceedings; and
(B) whether, at the time of the current offense or arrest, the person was on probation, on parole, or on other release pending trial, sentencing, appeal, or completion of sentence for an offense under Federal, State, or local law; and
(4) the nature and seriousness of the danger to any person or the community that would be posed by the person’s release. In considering the conditions of release described in subsection (c)(1)(B)(xi) or (c)(1)(B)(xii) of this section, the judicial officer may upon his own motion, or shall upon the motion of the Government, conduct an inquiry into the source of the property to be designated for potential forfeiture or offered as collateral to secure a bond, and shall decline to accept the designation, or the use as collateral, of property that, because of its source, will not reasonably assure the appearance of the person as required.
Nesse contexto, ao invés de simplesmente se enveredar para a invalidade das prisões preventivas extraprocedimentais, é necessária, argumentativamente, a reconstrução das funções externas do processo penal, expondo a necessidade de tutela cautelar dessas funções externas. Daí, também é necessário que se parta para uma abordagem normativa dos fundamentos das prisões preventivas extraprocedimentais, o que, em nosso país, ainda está para ser feito. De fato, no Brasil, nossa doutrina nem mesmo parece ter se dado conta da própria existência da categoria das prisões preventivas extraprocedimentais e das exigências de serem desenvolvidas teorias próprias para analisar tal espécie de prisão provisória.
Categorias:prisão preventiva, processo penal
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