Boias-frias, sofrimento e desconsideração previdenciária

boia-fria

Neste post, gostaria de tratar de um tema de grande recorrência judicial concernente aos direitos sociais dos assim denominados boias-frias: quais standards seriam admissíveis para avaliação da prova destinada à comprovação do tempo de serviço desses trabalhadores.

No âmbito rural, possivelmente o boia-fria (safrista, diarista, volante) seja quem tenha a mais frágil proteção previdenciária. Primeiro, porque a própria Lei 8.213/91 não traz, precisamente, sua situação fática (sua vida laboral tal qual concretamente se desenvolve) como elemento constituinte de normas definidoras das classes de segurados obrigatórios, nada esclarecendo, portanto, sobre se se trata de trabalhador rural, trabalhador avulso rural, contribuinte individual ou segurado especial.

Por decorrência dessa insuficiência de regulação normativa-previdenciária, a jurisprudência tem o boia-fria ora como segurado especial, ora como trabalhador rural, ora como trabalhador rural avulso, ora como contribuinte individual, sem, contudo, promover a devida distinção caso a caso. Em realidade, em grande parte dos modelos empregados pela jurisprudência, a situação do boia-fria é acriticamente trabalhada e tida como a mesma do segurado especial. Talvez seja possível, a depender da situação fática, a classificação do boia-fria em quaisquer das hipóteses legais referidas: contudo, tal discrímen, por regra, não é realizado.

Esperava-se que o Superior Tribunal de Justiça, por intermédio de sua Primeira Seção, no julgamento do REsp n.º 1.321.493-PR, submetido à sistemática dos recursos repetitivos, tivesse esclarecido o(s) regime(s) jurídico(s) dos boias-frias para fins previdenciários. Contudo, não parece tê-lo feito; eis a ementa:

 RECURSO ESPECIAL. MATÉRIA REPETITIVA. ART. 543-C DO CPC E RESOLUÇÃO STJ 8/2008. RECURSO REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. SEGURADO ESPECIAL. TRABALHO RURAL. INFORMALIDADE. BOIAS-FRIAS. PROVA EXCLUSIVAMENTE TESTEMUNHAL. ART. 55, § 3º, DA LEI 8.213/1991. SÚMULA 149/STJ. IMPOSSIBILIDADE. PROVA MATERIAL QUE NÃO ABRANGE TODO O PERÍODO PRETENDIDO. IDÔNEA E ROBUSTA PROVA TESTEMUNHAL. EXTENSÃO DA EFICÁCIA PROBATÓRIA. NÃO VIOLAÇÃO DA PRECITADA SÚMULA.

1. Trata-se de Recurso Especial do INSS com o escopo de combater o abrandamento da exigência de produção de prova material, adotado pelo acórdão recorrido, para os denominados trabalhadores rurais boias-frias.

2. A solução integral da controvérsia, com fundamento suficiente, não caracteriza ofensa ao art. 535 do CPC.

3. Aplica-se a Súmula 149/STJ (“A prova exclusivamente testemunhal não basta à comprovação da atividade rurícola, para efeitos da obtenção de benefício previdenciário”) aos trabalhadores rurais denominados “boias-frias”, sendo imprescindível a apresentação de início de prova material.

4. Por outro lado, considerando a inerente dificuldade probatória da condição de trabalhador campesino, o STJ sedimentou o entendimento de que a apresentação de prova material somente sobre parte do lapso temporal pretendido não implica violação da Súmula 149/STJ, cuja aplicação é mitigada se a reduzida prova material for complementada por idônea e robusta prova testemunhal.

5. No caso concreto, o Tribunal a quo, não obstante tenha pressuposto o afastamento da Súmula 149/STJ para os “boias-frias”, apontou diminuta prova material e assentou a produção de robusta prova testemunhal para configurar a recorrida como segurada especial, o que está em consonância com os parâmetros aqui fixados.

6. Recurso Especial do INSS não provido. Acórdão submetido ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução 8/2008 do STJ.

(REsp 1321493/PR, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 10/10/2012, DJe 19/12/2012)

Ou seja, o STJ ora considerou o boia-fria como trabalhador rural, ora como segurado especial. Como sabido, não se trata de termos permutáveis, pois que as consequências jurídicas decorrentes de uma ou de outra definição são absolutamente distintas, inclusive para fins tributários.

A Advocacia-Geral da União, por força do Parecer nº 06/2011/DIVCONT/CGMBEN/PFE-INSS (que tratava de salário-maternidade), acolhido pelo Coordenador-Geral de Matéria de Benefícios da Procuradoria Federal Especializada junto ao INSS, manifestou-se, por seu turno, pela consideração do boia-fria, para fins previdenciários, como contribuinte individual ou como trabalhador rural, reconhecendo, de pronto, contudo, ser a segunda hipótese a que ocorrerá na maioria dos casos, dada a realidade social a que submetidos tais segurados. Assim, o INSS foi comunicado para:

adequação não somente das normas internas, mas também dos procedimentos, com vistas a reconhecer os direitos das trabalhadoras rurais denominadas safristas, volantes, eventuais, temporárias ou “bóias-frias”, sobretudo em relação ao salário-maternidade que… que tem gerado uma enormidade de demandas judiciais, em sentido oposto aos objetivos do Program de Redução de Demandas Judiciais do INSS…

Do ponto de vista fático, o boia-fria talvez seja dos trabalhadores mais expostos a situações degradantes e exploratórias em pleno Século XXI no Brasil. Por crônica falta de preocupação estatal ou, mesmo, submissão a poderes e interesses rurais, o boia-fria tem sido submetido a condições de trabalho sem o mínimo respeito a normas protetivas, sendo essa triste realidade já de longa tradição histórica, calcada na exploração do homem e de sua miséria.

À evidência, tal situação de exploração, que, por vezes, reduz o boia-fria à condição análoga a de escravo (artigo 149 do Código Penal), reflete e sempre refletirá nas próprias possibilidades de acesso do segurado a provas materiais (documentais) de seu trabalho, tornando, no mínimo, injusta (para não dizer inconstitucional) a exigência de início de prova material (documental) como imprescindível para a comprovação de seu tempo de serviço para o fim de obtenção de benefício previdenciário, tal como faz o artigo 55, parágrafo 3º, da Lei 8.213/91, e a Súmula 149 do STJ.

Não é ele a fonte que produz a prova material sobre seu trabalho, encontrando-se tal prova (quando e se existe) nas mãos daquele que toma ou que explora seu labor. Ao contrário do segurado especial que atua em regime de economia familiar, que, portanto, é uma pequena unidade de produção, sendo possível gerador e recebedor de determinados documentos, o boia-fria é absolutamente passivo em relação à produção de provas documentais, que, por ele, unilateralmente não podem ser produzidas, a não ser quando nasce um filho ou, mesmo, quando morre.

Portanto, quando se se está diante de boia-fria, realmente a consideração do início de prova material deve ser feita com estrita parcimônia, com especial atenção à possibilidade probatória do segurado diante da relação, não poucas vezes, de exploração a que exposto. É na força probante testemunhal, no depoimento pessoal do autor, na análise direta que o juiz de primeiro grau realiza a partir de sua percepção direta da prova, de onde provirão elementos de convicção hábeis a reconhecer a atividade laboral do boia-fria para fins previdenciários. Se houver prova material, melhor; se houver pouca ou for frágil, mesmo assim, pelas razões expostas, deve ser considerado como atendido o patamar mínimo a partir do qual autorizada a ampla análise probatória por outras fontes. Condenações criminais podem ser feitas com base em prova exclusivamente testemunhal; embora as razões da exigência do início de prova material (que partem de uma profunda desconfiança sobre o cidadão), não há como, constitucionalmente, submeter-se o boia-fria a uma prova impossível para ele em face de sua situação de vida.

Há operar, dessa maneira, na análise que se faz sobre a prova material, o in dubio pro misero, sendo proporcional e adequando as exigências de apresentação de prova material às (im)possibilidades próprias da situação de vida dos boias-frias, cidadãos que, no campo, ainda têm em seu labor refletidos resquícios de exploração pessoal e degradação humana.



Categorias:Constituição, direitos humanos, direitos sociais, igualdade

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