Uma breve história da prisão preventiva no Brasil

Prisão de Tiradentes

A experiência jurídica brasileira passa, no tempo colonial, evidentemente, pela aplicação do direito português então vigente.

Na legislação colonial, por regra, ninguém seria preso sem culpa formada[1] e sem mandado emanado por juiz, apresentando-se, contudo, as seguintes exceções: a hipótese de flagrante delito e a hipótese de crime apenado com morte natural ou civil. Todavia, as exceções submetiam-se, por seu turno, a restrições: dever-se-ia formar a culpa dentro de oito dias, pois que, se assim não se procedesse, o réu deveria ser imediatamente solto[2].

Distante dessas duas hipóteses, o réu somente poderia ser preso preventivamente depois de pronunciado. Havia três tipos de pronúncia: 1) a pronúncia ordinária, nos casos em que o réu se livrava solto; 2) a pronúncia especial, nos crimes em que era possível que o réu se livrasse seguro (mediante fiança); 3) a pronúncia de réo capiendo, que tomava corpo nos crimes mais graves, devendo a prisão assim continuar até o julgamento[3].

Quando da proclamação da independência em 1822, veio a lume a Constituição de 1824, que, nos parágrafos 8º e 10, disciplinava que:

Ninguém poderá ser preso sem culpa formada, exceto nos casos declarados na lei; e estes, dentro de vinte a quatro horas, contadas da entrada da prisão, sendo em cidades, vilas ou outras povoações próximas aos lugares da residência do juiz, e nos lugares remotos dentro de um prazo razoável, que a lei marcará, atenta a extensão do território, o Juiz, por uma Nota por ele assinada, fará constar ao Réu o motivo da prisão, os nomes de seus acusadores, e os das testemunhas, havendo-as.

A exceção do flagrante delito, a prisão não pode ser executada senão por ordem escrita da autoridade legítima. Se esta for arbitrária, o juiz que a deu e quem a tiver requerido serão punidos com as penas da lei.

Por sua vez, o Código de Processo de 1832, em seu artigo 175, dispunha que, além da hipótese de flagrante delito:

Poderão também ser presos sem culpa formada os que forem indiciados em crimes em que não tem lugar fiança; porém, nestes e em todos os mais casos, à exceção dos de flagrante delito, a prisão não pode ser executada senão por ordem escrita da autoridade legítima.

Na prática, a suposta prática de crime em que não tinha lugar fiança autorizaria, segundo a conveniência judicial, a decretação da prisão preventiva. Essa disposição em si, ao longo dos anos de sua aplicação, já se mostrou insuficiente para a sua época, uma vez que bastava, para a realização da prisão preventiva, a mera conjectura de que o acusado cometera um crime “em que não tem lugar fiança”; nessa linha, foram as críticas do Deputado Figueira de Melo no âmbito da discussão do projeto do Deputado Saião Lobato de 1861 (que intentava instituir um auto especial e prévio para bem aquilatar a qualificação jurídica do fato imputável, com todas as razões justificadoras da prisão):

São conhecidos os abusos que resultam da atribuição que, pelo art. 175 do Código de Processo Criminal, têm as autoridades de proceder antes de culpa formada nos crimes inafiançáveis, porque geralmente entendem, para satisfazer alheias exigências, ou suas infundadas apreensões, que o indiciado criminoso cometera crime inafiançável e assim o conservam detido até que o processo informatório se conclua[4].

Noutro projeto, agora de 1869, José de Alencar também buscava dar à prisão preventiva maiores rigores de aplicação, assim propondo:

Só é permitida a prisão preventiva por veemente presunção de crime inafiançável, quando essa presunção for estabelecida pela declaração de duas testemunhas que jurem de ciência própria, ou pelo auto de corpo de delito, e quando concorrerem as duas circunstâncias de ser o indiciado pessoa não abonada, sem residência permanente no lugar e de não haver decorrido o prazo de três anos de perpetração do crime. Poderá, todavia, a autoridade, quando se trate de crime muito grave, exigir do indiciado caução ou fiança, no caso de existir contra ele presunção veemente[5].

Somente em 1870, a Câmara dos Deputados, retornando aos termos de projeto de 1861, organizou novo projeto, que culminou na Lei 2.033, de 20 de setembro de 1871, que assim dispunha no artigo 13, parágrafos 2º, 3º e 4º:

2º À excepção de flagrante delicto, a prisão antes da culpa formada só pôde ter lugar nos crimes inafiançaveis, por mandado escripto do Juiz competente para a formação da culpa ou à sua requisição; neste caso precederá ao mandado ou à requisição declaração de duas testemunhas, que jurem de sciencia propria, ou prova documental de que resultem vehementes indicios contra o culpado ou declaração deste confessando o crime.

3º A falta, porém, do mandado da autoridade formadora da culpa, na occasião, não inhibirá a autoridade policial ou Juiz de Paz de ordenar a prisão do culpado de crime inafiançavel, quando encontrado, se para isso houverem de qualquer modo recebido requisição da autoridade competente, ou se fôr notoria a expedição de ordem regular para a captura; devendo, porém, immediatamente ser levado o preso à presença da competente autoridade judiciaria para delle dispôr. E assim tambem fica salva a disposição do art. 181…

4º Não terá lugar a prisão preventiva do culpado, se houver decorrido um anno depois da data do crime.

Assim, a prisão preventiva passou a exigir especiais contornos de formalização e de prévia instrução para sua decretação, autorizada nos casos de crimes inafiançáveis, sem, contudo, haver na legislação quaisquer referências a requisitos de cautelaridade (periculum in mora). Regulamentando esse dispositivo, o artigo 29 do Decreto 4.824, de 22 de novembro de 1871, assim disciplinava que se procedessem aos pedidos de prisão preventiva:

Ainda antes de iniciado o procedimento da formação da culpa ou de quaisquer diligências do inquérito policial, o Promotor Público, ou quem suas vezes fizer, e a parte queixosa, poderão requerer, e a autoridade policial representar, acerca da necessidade ou conveniência da prisão preventiva do réu indiciado em crime inafiançável, apoiando-se em provas, de que resulte veementes indícios de culpabilidade, … a autoridade judiciária, competente para a formação da culpa, reconhecendo a procedência dos indícios contra o argüido culpado, e a conveniência de sua prisão, por despacho nos autos a ordenará, ou expedindo mandado escrito, ou requisitando por comunicação telegráfica, por aviso geral na imprensa, ou por qualquer outro modo que faça certa a requisição.

Sem prejuízo, tal Regulamento também autorizava a que o Juiz, de ofício, decretasse a prisão preventiva do réu:

Independentemente de requerimento da parte acusadora ou representação da autoridade policial, poderá do mesmo modo o juiz formador da culpa, julgando necessário ou conveniente, ordenar ou requisitar, antes da pronúncia, a prisão do réu de crime inafiançável, se tiver coligido ou lhe for presente aquela prova de que resultem veementes indícios da culpabilidade do dito réu.

Por sua vez, ainda acerca da prévia existência de elementos de prova que autorizassem concluir-se pela presença de crime inafiançável, o Aviso nº 438, de 29 de outubro de 1877, dizia que:

… a prova essencial para essa representação não depende da formação do inquérito, conquanto se possa dele extrair, em próprio original, por certidão, ou por cópia, conforme a urgência do caso, qualquer prova necessária para ser apreciada pelo juiz, que deverá em todo o caso proceder ao autuamento e decidir como for justo e em tempo de evitar o mau êxito da diligência; devolvendo à autoridade policial, a fim de ser junto ao inquérito, o documento que em original tenha sido extraído.

Com a República, a Constituição de 1891, no artigo 72, parágrafos 13 e 14, disciplinou que:

À exceção do flagrante delito, a prisão não poderá executar-se, senão depois de pronúncia do indiciado, salvo os casos determinados em lei, e mediante ordem escrita da autoridade competente.

Ninguém poderá ser conservado em prisão sem culpa formada, salvas as exceções especificadas em lei, nem levado à prisão, ou nela detido, se prestar fiança idônea, nos casos em que a lei a admitir.

Embora o regime republicano, ainda se mantiveram em vigência as normas atinentes à prisão preventiva, em especial aquelas veiculadas no artigo 13 da Lei 2.033, de 1871[6]. E, interpretando essa legislação, o Supremo Tribunal Federal, em Acórdão de 4 de maio de 1892, teve a oportunidade de decidir que:

Não basta, para considerar-se legal a prisão sem culpa formada, que das provas especificadas no art. 13, § 2º, da Lei n. 2.033, de 1871, resultem veementes indícios de ter o culpado cometido um delito qualquer: é demais preciso que a autoridade tenha obtido tal conhecimento do crime, que a habilite a discriminar-lhe a natureza e gravidade, em ordem a poder com segurança decidir preliminarmente se é ou não afiançável. Está neste caso o crime que pode ser provado pelo corpo de delito direto; mas, nem sempre estão nesse caso aqueles que dependem de outras diligências e pesquisas, que só no sumário da culpa se podem fazer, inquirindo-se testemunhas, acerca da sua existência e circunstâncias e do delinqüente[7].

Após, pelo artigo 27, parágrafo 1º, I e II, Decreto 2.110, de 30 de setembro de 1909, ampliou-se o espaço para a decretação da prisão preventiva; outrossim, revogou-se a limitação temporal para a sua decretação, que dependeria, sob esse aspecto, exclusivamente da não-ocorrência de prescrição:

Art. 27. A prisão preventiva é autorizada de acordo com a legislação vigente.

1º. Nos crimes afiançáveis quando se apurar no processo que o indiciado:

I – é vagabundo, sem profissão lícita e domicílio certo;

II – já cumpriu pena de prisão por efeito de sentença proferida por tribunal competente.

2º Nos crimes inafiançáveis, enquanto não prescreverem, qualquer que seja a época em que se verifiquem indícios veementes de autoria ou cumplicidade, revogado o § 4º do art. 29 do Decr. 4.824 de 29 de novembro do mesmo ano.

Nessa mesma linha, aliás, caminhou o Decreto 4.780, de 27 de dezembro de 1923, que estabelecia penas para os crimes de peculato, moeda falsa, falsificação de documentos:

Art. 31. A prisão preventiva é autorizada de accôrdo com a legislação vigente:

1º Nos crimes afiançaveis quando se apurar no processo que o indiciado:

  1. a) é vagabundo sem profissão licita e domicilio certo;
  2. b) já cumpriu pena do prisão por effeito de sentença proferida por tribunal competente.

2º Nos crimes inafiançaveis, emquanto não prescreverem, qualquer que seja a época em que se verifiquem indicios vehementes de autoria ou cumplicidade, revogados, o § 4º do art. 13, da lei n. 2.033, de 20 de setembro de 1871, e o § 3º do art. 29 do decreto n. 4.824, de 29 de novembro do mesmo anno.

Destaque-se, contudo, que a Constituição de 1891, por interpretação conferida ao artigo 34, “23º” [8], conferia aos Estados competência para legislar sobre processo, do que resultou foram editados, em níveis estaduais, códigos de processo penal. Assim, o Estado do Rio Grande do Sul, no artigo 194 de seu Código de Processo Criminal, assim estabeleceu a prisão preventiva:

Art. 194. A ordem de prisão preventiva deve ser expedida: a) no caso de homicídio ou lesão pessoal gravíssima, salvo se estes fatos são justificáveis ou cometidos casualmente; b) nos atentados à propriedade, quando as penas excedam de quatro anos de prisão celular; c) se o indiciado, durante a formação da culpa, pratica novo delito, ameaça a parte ofendida ou tenta corromper ou intimidar as testemunhas.

Contudo, segundo Romeu Pires de Campos Barros, a legislação gaúcha sobre a prisão preventiva foi tida por inválida, “tendo o Supremo Tribunal Federal declarado inconstitucionais as disposições desse Código, que não se conciliassem com a legislação federal, no assunto das restrições à liberdade individual” [9].

Dessa maneira, antes da pronúncia, a prisão preventiva operava-se nos crimes que não eram suscetíveis de fiança (excepcionando-se, como visto, os casos do artigo 27, parágrafo 1º, I e II, do Decreto 2.110, de 30 de setembro de 1909, e do artigo 31 do Decreto 4.780, de 27 de dezembro de 1923).

Bem se constata, portanto, que, até então, não havia, como no Código de Processo Penal de 1941 vindouro, disposições acerca dos elementos de cautelaridade (periculum in mora) que autorizariam a segregação (conveniência da instrução penal, aplicação da lei penal, ordem pública, v.g.).

De toda forma, os autores de então discutiam acerca dos fundamentos do instituto, embora, na prática, o cometimento de crime em que não tinha lugar a fiança de per si já permitia a decretação da prisão, sendo essa a prática no mais das vezes corrente.

Exemplos de fundamentos para o instituto, de modo a não se autorizar a medida tão-somente na impossibilidade de concessão de fiança, são colhidos em diversos autores representativos do período, tais como João Mendes de Almeida Júnior (1920) e Galdino Siqueira (1930).

João Mendes de Almeida Júnior, ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, analisando Faustin Helie, Ortolan, Carrara, Garrofalo e Carelli, Lucchini e Francisco Fernandes, acaba por concluir que:

 todas essas teorias reconhecem a necessidade da prisão preventiva; os próprios ORTOLAN e CARRARA, que mais se mostram avessos à medida, não se animam a afirmar a conveniência da sua eliminação. Os abusos e a imprevidência das administrações não constituem razão para abolir-se a medida da prisão preventiva, mas incentivos para restringir os seus casos, tanto quanto possível, aos crimes mais graves e para regular a prudência do arbítrio do juiz em fórmula precisa[10].

E, apreciando o pensamento de tais autores, cita múltiplos fundamentos para a prisão preventiva; por exemplo, com Garofalo e Carelli, refere a fundada suspeita de fuga, a fundada suspeita da destruição dos sinais e vestígios do crime, o suborno ou peita de testemunhas; pertencer o indiciado a uma classe perigosa; grave perturbação da ordem pública; gravidade do crime. Segundo se constata, acaba por aderir, parcialmente, ao pensamento do doutrinador português Francisco Fernandes, cujas lições assim foram sintetizadas por ele:

… 1º) a prisão preventiva, durante o período da instrução, deve ser obrigatória em todos os crimes puníveis com penas privativas da liberdade pessoal, sempre que os indiciados tenham sido ou presos em flagrante delito, ou confessado o delito, ou sejam reincidentes; 2º) a prisão preventiva deve ser facultativa ao juiz, quando, não se verificando estes requisitos, houver suspeita de fuga, sendo que esta se presume: a) quando o delito é punível com alguma das penas maiores da escala penal; b) quando o indiciado não tem domicílio; c) quando é estrangeiro e há motivo sério para recear que se não apresente em juízo, quando devidamente citado; 3º) a prisão preventiva deve ser facultativa ao juiz também no caso de tentativa de suborno e testemunhas, peritos ou cúmplices, receio de destruição e vestígios do crime ou de outros modos impedir a ação da justiça, perigo de repetição do crime consumado ou efetivação do ameaçado ou tentado; 4º) nestes últimos casos e em todos aqueles em que a pena é correicional, podem os réus livrar-se sob caução o fiança…

Já Galdino Siqueira, citando Faustin Helie (fato então comum nos manuais de processo penal da época), dizia que:

 Advindo assim da necessidade de acautelar a administração da justiça, a prisão preventiva (que melhor se denominaria – detenção ou custódia, como a denominava o Cód. Do Processo Criminal) se manifesta, como bem nota FAUSTIN HELIE, como medida de segurança, como garantia da execução da pena e como meio de instrução. Como medida de segurança, a prisão preventiva tem por fim evitar que o delinqüente commetta novos crimes, e mesmo evitar que seja victima da vindicta do offendido. Como garantia da execução da pena, ella tem por fim evitar que o delinqüente fuja à pena que merece e às reparações civis. Como meio de instrucção, ella tem por fim evitar que delinqüente faça desapparecer os vestígios do crime, que suborne testemunhas, que se concerte com os cúmplices para o plano de evitar a descoberta da verdade. A indicação desses fins especiaes vem mostrar que se trata de uma medida relativa, e por isso não necessária em todos os casos, para todos os delinqüentes e em todo e qualquer momento da instrucção processual.”[11]

Em 1942, sob inspiração do Código de Processo Penal italiano, de 19 de outubro de 1930, veio a lume o Código de Processo Penal até hoje em vigor, que, inicialmente, previa a prisão preventiva obrigatória, nos seguintes termos em seu artigo 312:

 Art. 312. A prisão preventiva será decretada nos crimes a que for cominada pena de reclusão por tempo, no máximo, igual ou superior a dez anos.

Também o Código de Processo Penal trouxe as específicas hipóteses autorizadoras da prisão preventiva – os elementos de cautelaridade (garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal), em seu artigo 313, que também estabelecia os crimes com relação aos quais a medida restava cabível:

 Art. 313. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal:

I – nos crimes inafiançáveis, não compreendidos no artigo anterior;

II – nos crimes afiançáveis, quando se apurar no processo que o indiciado é vadio ou quando, havendo dúvida sobre sua identidade, não fornecer ou indicar elementos suficientes para esclarecê-la;

III – nos crimes dolosos, embora afiançáveis, quando o réu tiver sido condenado por crime da mesma natureza, em sentença transitada em julgado.

Somente 26 anos após, a redação original dos artigos 312 e 313 foi alterada (por força da Lei 5.349, de 3 de novembro de 1967), extinguindo-se a hipótese de prisão preventiva obrigatória:

 Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indícios suficientes da autoria.

Art. 313. A prisão preventiva poderá ser decretada:

I – nos crimes inafiançáveis;

II – nos crimes afiançáveis, quando se apurar no processo que o indiciado é vadio ou quando, havendo dúvida sobre a sua identidade, não fornecer ou indicar elementos suficientes para esclarecê-la;

III – nos crimes dolosos, embora afiançáveis, quando o réu tiver sido condenado por crime da mesma natureza, em sentença transitada em julgado.

Deixando o critério da afiançabilidade, ou não, da infração, a Lei 6.416, de 24 de maio de 1977, autorizou a prisão preventiva, incondicionalmente, também nos crimes dolosos afiançáveis, exigindo, tão-somente, que estes fossem punidos com reclusão; para os casos de crimes punidos com detenção, a medida apenas seria empregada nas hipóteses previstas nos incisos II e III do artigo 313. Eis a nova redação do artigo 313 do Código de Processo Penal:

 Art. 313. Em qualquer das circunstâncias, previstas no artigo anterior, será admitida a decretação da prisão preventiva nos crimes dolosos:

I – punidos com reclusão;

II – punidos com detenção, quando se apurar que o indiciado é vadio ou, havendo dúvida sobre a sua identidade, não fornecer ou não indicar elementos para esclarecê-la;

III – se o réu tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no parágrafo único do art. 46 do Código Penal.

Ademais, a Lei 6.416/77 trouxe significativa alteração, de grande impacto em todo o sistema normativo, ao inserir um parágrafo único ao artigo 310 do Código de Processo Penal, que assim passou a vigorar:

Art. 310.  Quando o juiz verificar pelo auto de prisão em flagrante que o agente praticou o fato, nas condições do art. 19, I, II e III, do Código Penal, poderá, depois de ouvir o Ministério Público, conceder ao réu liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos do processo, sob pena de revogação.

Parágrafo único.  Igual procedimento será adotado quando o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, a inocorrência de qualquer das hipóteses que autorizam a prisão preventiva (arts. 311 e 312).

Com as alterações de 1977, operou-se uma importante mudança no sistema normativo da prisão preventiva, que, então, pode-se dizer que, de fato, guinou para um sistema de tutela cautelar.

Primeiro, porque se deixou a tradição do direito brasileiro que autorizava a prisão preventiva apenas nos crimes em que não tinha lugar a fiança. Os crimes inafiançáveis, por regra, carregavam uma forte presunção de necessidade da medida de segregação, como se pode ver, claramente, no período anterior ao Código de Processo Penal de 1941, em que, na legislação federal, nem mesmo havia referências a elementos de cautelaridade (ordem pública, conveniência da instrução penal ou garantia da aplicação da lei penal). Na prática, independentemente do que apregoado pela doutrina, então influenciada pela doutrina italiana, bastava para a sua decretação que o crime fosse inafiançável, ainda mais porque não havia parâmetros de cautelaridade disciplinados, resumindo-se, a necessidade da prisão, à “conveniência e ao prudente arbítrio” do juiz, que, desde sempre, eram criticados.

Segundo, porque desvinculou a impossibilidade da concessão da fiança de qualquer presunção de necessidade de prisão. Ao contrário, da necessidade da prisão é que decorria, agora, independentemente da pena cominada, a impossibilidade da concessão de fiança (artigo 324, IV, do Código de Processo Penal). A necessidade da prisão é que passou a desempenhar papel central no sistema normativo da fiança. Tanto isso é verdade que, se antes da Lei 6.416/77, a prisão em flagrante, nos crimes não sujeitos à fiança, submetia, por regra, o indiciado à segregação por todo o processo, a partir de então a manutenção da prisão imprescindiria da presença de todos os elementos da prisão preventiva (em especial, aqueles referentes à cautelaridade), sob pena da concessão da liberdade provisória.

Assim, deixava a prisão preventiva de, em um primeiro plano, fundar-se, para sua decretação, nas meras presumidas decorrências do cometimento de um crime não-sujeito à fiança (tradição de séculos do direito brasileiro), para compatibilizar-se com a doutrina que, já antes do Código de Processo Penal (e que lhe influenciou significativamente), há tempos centrava nos elementos de cautelaridade o fundamento do instituto, que deveriam restar demonstrados caso a caso.

Houve, na verdade, uma revolução do paradigma interpretativo.

Isso porque os elementos de cautelaridade, se agora postos na ordem do dia, já se faziam presentes desde a edição do Código, em 1941. É que, em 1977, retirou-se do requisito da impossibilidade de fiança (e das presunções de necessidade decorrentes) o papel preponderante que exercia, passando a vir como elemento de primeiro plano, então, a própria análise concreta da necessidade da segregação, que deveria restar estampada na garantia da ordem pública, na conveniência da instrução penal e na garantia da aplicação da lei penal. Mudou-se muito sem que houvesse qualquer inserção da necessidade de observância dos elementos de cautelaridade: ao tornar irrelevante, para a decretação da prisão preventiva, a impossibilidade de fiança, fortaleceu-se a prisão preventiva justamente em seus requisitos intrínsecos de cautelaridade.

Em 1986, a Lei 7.492, de 16 de junho de 1986, que dispôs sobre os crimes contra o sistema financeiro nacional, trouxe novo elemento de cautelaridade em seu artigo 30, qual seja, a decretação da prisão preventiva em razão da magnitude da lesão causada:

Art. 30. Sem prejuízo do disposto no art. 312 do Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, a prisão preventiva do acusado da prática de crime previsto nesta lei poderá ser decretada em razão da magnitude da lesão causada.

Em 1994, pela Lei 8.884, de 11 de novembro de 1994, que dispôs sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, inseriu-se, no artigo 311 do CPP, mais um elemento de cautelaridade, consubstanciado na garantia da ordem econômica.

E, finalmente, pela Lei 11.340/2006, autorizou-se a prisão preventiva, independentemente de se tratar de crime apenado com detenção, nas hipóteses que envolverem “violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da lei específica, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência”, inserindo-se, então, o inciso IV ao artigo 312 do CPP.

Hoje, os elementos de cautelaridade da prisão preventiva é que ocupam, acertadamente, a ordem do dia, especialmente aqueles referentes à ordem pública, à ordem econômica e à magnitude da lesão causada, cujos bens jurídicos tutelados dificultam, sobremaneira, a análise sobre suas naturezas cautelares.

Isso será tema de debate em futuro post.

 

Notas:

[1] Conforme João Mendes de Almeida Júnior, a formação da culpa consistia em uma série de atos preliminares da acusação, intitulado sumário da culpa, que culminava com uma sentença de pronúncia ou não-pronúncia, a partir da qual se abria a fase plenária em que se exerceria o direito de defesa. Consoante Pimenta Bueno, “formação da culpa é o processo preliminar ou série de atos determinados pela lei, por meio dos quais o juiz competente examina e comprova a existência do crime, reconhece seus elementos, esclarece suas circunstâncias, e colige as provas de quem seja seu autor e cúmplices, quando haja; e, consequentemente, detém os indiciados debaixo de fiança ou prisão, nos termos da lei, até que se decida da acusação” (Apud ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo Criminal Brasileiro, 4ª edição, vol. II, Rio de Janeiro: Ed. Livraria Freitas Bastos S.A., 1959, p. 205).

[2] Nesse sentido, Joaquim José Caetano Pereira e Sousa (Primeiras Linhas sobre o Processo Criminal, Of. Patr. de Francisco Luiz Ameno, 1785, Lisboa), dizia que: “Regularmente o Réu não pode ser preso sem ordem do Magistrado, nem antes de culpa formada, exceto: 1º quando é achado em flagrante delito; 2º quando o crime provado merece pena de morte natural ou civil. Sobre este ponto, vejam-se a Lei de 6 de dezembro de 1612, § 14, o Alvará de 19 de outubro de 1754, § 1º. O dito Alvará de 19 de outubro de 1754 estendeu este procedimento aos casos de devassa, em que cabe pena de açoites ou de degredo maior que o de seis anos para o Brasil. Nestes casos, deve-se formar culpa ao réu dentro do prefixo termo de oito dias (dito Alvará de 5 de março de 1790, § 1º). Note-se que o § 14 da Lei de 6 de dezembro de 1612 se explica pela palavra poder, que não denota necessidade e que a sua execução deve restringir-se a crimes mais graves e aplicar-se prudentemente”. Apud ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo Criminal Brasileiro, 4ª edição, vol. I, Rio de Janeiro: Ed. Livraria Freitas Bastos S.A., 1959, p. ).

[3] Ver, nesse sentido, ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. Ob. cit., vol. I)

[4] Apud ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. Ob. cit., vol. I, p. 329.

[5] Apud ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. Ob. cit., vol. I, p. 329-330.

[6] Galdino Siqueira dizia que: “Sob o influxo das idéias da Revolução Francesa, a Constituição do Império procurou acautelar a liberdade individual, estatuindo sobre os casos de sua restricção (art. 179, §§ 9 e 10), e o Cod. do Processo Criminal, art. 175, reiterado no art. 114 do Reg. Nº 120 de 1842, deixou consignado que podiam ser presos sem culpa formada os indiciados em crimes inafiançáveis, porém nestes e em todos os mais casos, à exceção dos de flagrante delito, a prisão não podia ser executada senão por ordem escripta da autoridade legítima. Para coibir os abusos e arbitrariedades que se cometiam e que não podia refrear o dispositivo legal, por vago, procurou-se determinar precisamente os casos de restrição da prisão preventiva, antes da culpa formada, e sua formula precisa. Provendo a respeito, a Lei nº 2033 de 20 de setembro de 1871, art. 13, §§ 2º, 3º e 4º e Decr. nº 4824 de 22 de novembro do mesmo ano, art. 29 dispõem que ainda antes de iniciado o procedimento da formação da culpa ou de quaesquer diligencias do inquérito policial, o promotor público, ou que suas vezes fizer, e a parte queixosa poderão requerer, e a autoridade policial representar acerca da necessidade ou conveniência da prisão preventiva do réo indiciado em crime inafiançável, apoiando-se em prova de que resultem veementes indícios de culpabilidades, ou seja confissão do mesmo réo ou documento ou declaração de duas testemunhas; e, feito o respectivo autoamento, a autoridade judiciária competente para a formação da culpa, reconhecendo a procedência dos indícios contra o argüido culpado, e a conveniência de sua prisão, por despacho nos autos a ordenará, o expedindo mandado escripto, ou requisitando por comunicação telegraphica, por aviso geral na imprensa, ou por qualquer outro modo que faça certa a requisição” (Curso de Processo Criminal, 2ª ed., São Paulo: Livraria Magalhães, 1930, 132-133).

[7] Apud ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. Ob. cit., vol. I, p. 345.

[8] Disciplinava essa norma constitucional que: “Art 34 – Compete privativamente ao Congresso Nacional: … 23º) legislar sobre o direito civil, comercial e criminal da República e o processual da Justiça Federal”.

[9] Processo Penal Cautelar, Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 176.

[10] ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. Ob. cit., vol. I, p. 352.

[11] Ob. cit,, p. 129.



Categorias:história do direito brasileiro, prisão preventiva, processo penal

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