
Na sua atividade profissional, ao juiz concebem-se estreitas janelas para observação e atuação no mundo, aportando-lhe o conflito, pão de cada dia do seu ofício, quase sempre pelas narrações dos outros, mediadas pelas formas e tecnicalidades do processo judicial. Mesmo assim, ao juiz não há garantias para o estabelecimento de distâncias emocionais seguras do conflito. De modo a poder julgar, é preciso, a partir do mosaico incompleto de provas disponíveis, construir e constituir cenários, possibilidades e interpretações sobre o passado, o presente e o futuro, todos tão movediços. E, mergulhando-se em cada cenário, porque demasiadamente somos todos humanos, sentimos, duvidamos e sofremos, inclusive pelas consequências das nossas intervenções. Na solidão dos gabinetes, transformamo-nos em caixas de ressonância apenas por nós ouvidas.
Por vezes, no processo, somos também expostos a contatos epidérmicos com os fatos. Há mais de quinze anos, na jurisdição ambiental, visitei uma obra de tamponamento de uma mina de subsolo abandonada de carvão. Objetivava-se, com a construção de uma enorme tampa de concreto, que as águas poluídas da mina ficassem nela retidas, poupando-se temporariamente a vida da superfície de sua acidez mortal. No entanto, alguns séculos à frente, quando o interior da mina estivesse repleto de água ácida, os futuros humanos habitantes de Gaia teriam de encarar novamente o problema, provavelmente instalando uma estação de tratamento de efluentes, que possivelmente funcionaria, por sua vez, por séculos, enquanto houvesse a drenagem ácida da mina.
Com frequência retorno àquele momento. Embora entendesse o orgulho dos engenheiros, para mim aquilo tudo era tristeza. A parede plúmbea de concreto me fazia sentir perante uma tumba, um enterro de um passado que se tornará um fardo para gerações futuras, que, acredito, jamais compreenderão por que fizemos o que fazemos ao nosso planeta. Naquele dia, transferimos os resultados nocivos de nossas ganâncias econômicas àqueles que nasceriam dali a séculos. A emocional e direta percepção disso tudo me trouxe, no exato instante daquele momento, um sentido urgente de defesa e preservação do meio ambiente para as gerações futuras, basilar comando constante em nossa Constituição, que, se antes se me afigurava um tanto teórico, uma vez vivido e sentido, ganhou uma dimensão completamente nova, que nunca mais deixou de ter em minha vida.
Hoje, retornei àquele dia e revejo como sempre senti como desoladora a lúgubre lembrança daquela tumba perdida em distante zona rural, que permanecerá em seu silêncio de sepulcro por séculos. Quisera estivesse diante de um memorial, que jamais permitisse apagar da nossa consciência coletiva o quanto somos pequenos e mesquinhos em nossa relação com o meio ambiente. Jamais aquela tumba será um memorial, mas sempre será minha lembrança, que hoje se faz efemeramente coletiva.
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